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Foto do escritorTiago Sanches Valentin

Aplicativo ajuda na alfabetização de crianças com autismo e dislexia

Atualizado: 8 de abr. de 2022


Por: Amanda Leite e Ana Carolina Avólio

Há quem diga que o mundo mudou por causa da tecnologia. Decerto, algumas relações se tornaram mais impessoais – bastam alguns cliques para pedir o jantar ou marcar um encontro. Mas foi essa revolução tecnológica o start para o projeto da fonoaudióloga Katia Esper. Graduada há mais de trinta anos pela PUC-SP, a profissional enxergou a tecnologia com outros olhos e a tornou uma das maiores aliadas de pessoas com alguma deficiência intelectual, em especial pacientes com autismo e dislexia.

O processo de alfabetização sempre foi um dos focos da carreira de Katia. “Eu comecei a utilizar uma metodologia alternativa como jogos de tabuleiro, sucata, tampinhas de garrafa… Jogos adaptados para aplicar algumas abordagens que pudessem oferecer uma forma de alfabetização mais lúdica”, conta. No entanto, a adesão das crianças à tecnologia fez com que o processo tivesse que ser repensado. “As crianças que entravam no consultório antigamente tinham a expectativa de jogar um jogo de tabuleiro ou de bola. Hoje em dia, eles já entram com o celular ou tablet nas mãos e perguntam o que eu tenho no meu notebook”. Acompanhando a evolução do interesse dos pacientes, a fonoaudióloga repensou suas abordagens de modo que pudessem ser mais interativas e utilizadas por crianças de todos os lugares e idades. Foi assim que surgiu o aplicativo “Foco x Cuca Fresca”.


O JOGO


Durante a brincadeira, o jogador tem contato com diversos fonemas. Fonte: Divulgação


Logo de início, o jogador é apresentado a Max, seu avatar no game. Em seguida, aparecem os personagens que dão nome ao aplicativo. “O Foco, representado por um raio, é a vontade de vencer, o pensamento positivo”. O seu companheiro Cuca Fresca, por outro lado, representa o famoso “deixa para depois”. “Ele reflete o que a pessoa que tem dificuldade quer, é uma nuvem que navega devagarzinho, que está sempre pronta para descansar”, conta a fonoaudióloga, também responsável pelo processo de criação dos personagens. As duas figuras atuam em constante diálogo durante as diferentes fases do jogo. “O Cuca Fresca ajuda a criança a se identificar como quando ela está sem vontade de aprender, mas o Foco faz com que ela saia do sofá, vá em frente e conquiste novos caminhos”, explica.

Na primeira fase, a criança é convidada a dar uma volta pela floresta, onde deve pegar sílabas que estão soltas pelo caminho que Max percorre. Através de estímulos visuais e auditivos, o jogador aprende seis sílabas diferentes. Katia Esper explica que, mesmo que o paciente não pegue as sílabas, há a apresentação da palavra falada, trazendo os conceitos de sequenciação, associação fonema-grafema e consciência fonológica à tona.

Na fase seguinte, Max conta com a ajuda de Foco e Cuca Fresca para formar uma ponte com as palavras coletadas na floresta, sempre com o estímulo auditivo presente. O jogador tem, então, a oportunidade recombinar as sílabas formando diferentes significados. Na continuação, Max deve atravessar um mar repleto de piranhas. Para isso, a criança deve recombinar as palavras, mas desta vez sem a ajuda dos personagens. Essa é a única tela em que o avatar pode “morrer” e, caso isso aconteça, o jogador é convidado a recomeçar o jogo.

Finalizando a jornada, a última fase é uma espécie de avaliação: a construção de pseudopalavras, ou seja, palavras sem significado. Simpáticos morceguinhos aparecem na tela falando seu nome. Em seguida, o jogador tem que selecionar a cadeira onde o animal deve sentar de acordo com o nome dito. Katia explica que “se o jogador assimilou os conceitos oferecidos nas telas anteriores – memória visual-auditiva, conceito de início e fim, sequenciação… – ele passa na tela dos morcegos, senão, ele também vai ter que começar do zero”.


CONCEITOS POR TRÁS DA BRINCADEIRA

Embora crianças com autismo apresentem dificuldades relacionadas às linguagens verbal e gráfica, assim como problemas em relacionamentos sociais, elas certamente lidam muito bem com dispositivos eletrônicos. “A ideia de colocar essa abordagem que oferece alfabetização de forma alternativa através de um aplicativo veio para facilitar a interação das pessoas que têm essas dificuldades com um educador. A criação do jogo foi feita toda em função da pessoa jogar sozinha, ele é autodidático. A criança vai jogando, interagindo com os personagens e eles vão mostrando o caminho”, explica a fonoaudióloga.

Já para pessoas com dislexia, o jogo também rendeu resultados muito bons. Embora esses pacientes se relacionem bem no meio social, a assimilação das regras da língua, tanto na leitura quanto na escrita, é um grande obstáculo. “Isso ocorre por conta problemas de discriminação visual-auditiva, sequenciação [quando a pessoa escreve todas as palavras sem espaço], ou separação indevida das sílabas [porque não entendem que a palavra apresentada é uma só, composta por várias sílabas]”. O aplicativo torna a assimilação desses conceitos divertida, pois a criança aprende gradativamente aquilo que está sendo apresentado de forma subjetiva. Essa é exatamente parte da razão pela qual o método se mostrou tão eficiente – o jogador não percebe que está sendo avaliado.


DESENVOLVIMENTO

Katia Esper apresentando o aplicativo. Fonte: Arquivo Pessoal


Em meio a tablets e smartphones, a inspiração veio de tampinhas de garrafa. Ao perceber que a alfabetização, quando tratada de maneira mais lúdica, trazia bons resultados com pacientes com deficiência intelectual, a profissional resolveu dedicar sua carreira ao aprimoramento do método. “Eu comecei escrevendo uma cartilha baseada na aquisição da linguagem verbal e gráfica, utilizei meus conhecimentos na área da fonoaudiologia e comecei a desenvolver um livro, uma história, que se transformou em uma cartilha que precisaria de um CD para acompanhar”. No entanto, com o avanço da tecnologia, Esper logo percebeu que não precisava se limitar a um CD-Room. Buscando uma maior interação do game com seu público, a fonoaudióloga viu a criação de um aplicativo como a melhor solução.

Com a ideia formada e o tipo de plataforma decidido, Katia Esper começou a dar vida a seu projeto se inscrevendo em concursos de empresas incubadoras e aceleradoras. “Entre mais de 6 mil inscritos, meu game foi selecionado para participar do ‘Acelera Startup’ da Fiesp em novembro de 2016”, conta. Atualmente, a startup de Katia está incubada no Inatel – Instituto Nacional de Telecomunicações. Isso significa que a profissional recebe suporte gerencial, acompanhamento da evolução do projeto, consultoria e disponibilização de equipamentos deste Instituto.

Passado o processo de criação inicial, a fonoaudióloga começou a trabalhar também com aceleradoras de startups, ou seja, empresas que investem em seu projeto – que já está em crescimento – através de apoio financeiro, mentoria e acesso às redes de contatos. A parceria é fundamental para a manutenção e ampliação do aplicativo. “Estamos formatando o game da melhor maneira possível para o consumidor e desenvolvendo as próximas fases” – ao todo, são 133 telas que ajudam no processo de alfabetização.


PRÓXIMAS ETAPAS

O trabalho com o game mostrou resultados incríveis ao longo de dois anos. “Tenho uma equipe de fonoaudiólogas, psicopedagogas e professoras que trabalham usando o aplicativo. Obtivemos 95% de sucesso nessa primeira etapa de jogo”, relata Katia. Para continuar desenvolvendo as telas subsequentes, a profissional depende do investimento de empresas aceleradoras. Porém, enquanto isso não ocorre, ela volta no tempo e promove o jogo da mesma forma que fez nos últimos trinta anos: usando tampinhas de garrafa que contém as sílabas, para que a criança possa aplicar os mesmos conceitos utilizados virtualmente. A continuação já foi idealizada e tem como foco todo o conteúdo do Ensino Fundamental I.

Além disso, a fonoaudióloga pretende também incluir novos avatares, para que o paciente possa escolher como quer parecer no jogo e, deste modo, se identificar ainda mais com as aventuras proporcionadas. “Temos a ideia de oito avatares para que a criança se sinta da maneira que é ali na telinha”, explica.


“A RELAÇÃO DELE COM A TECNOLOGIA É ABSOLUTAMENTE PERFEITA”

Otávio se relaciona muito bem com a tecnologia. Fonte: Amanda Leite


“O mais difícil é a concentração, ele não gosta nem da textura do lápis”, relata a química Cristina Paixão (49), avó adotiva de Otávio (7), recentemente diagnosticado com TEA (Transtorno do Espectro Autista). “É muito complicado, ele não consegue realizar qualquer tarefa sem se distrair ou ficar estressado”. De acordo com Paixão, por conta de tantos empecilhos no aprendizado, Otávio teve a alfabetização adiada. “Ele ainda está no processo de reconhecer cada letra, não sabe ler ou escrever”, relata.

Para uma criança com autismo como Otávio, a possibilidade de aprender a partir de um mundo imaginário como o do “Foco x Cuca Fresca” é um privilégio. A psicóloga Juliana Pires acredita que a utilização do aplicativo ajuda a criança a revelar seu estado cognitivo. “Pelo fato de ser prazeroso e interativo, [o jogo] facilita o processo de aprendizagem da criança”, completa. A teoria é confirmada por Cristina, que convive com o problema de perto: “A relação do Otávio com a tecnologia é absolutamente perfeita e o lúdico só agrega. Mesmo gostando muito do computador, ele ainda busca atividades mais recreativas, afinal continua sendo uma criança”

De acordo com Pires, o imaginário do aplicativo auxilia no desenvolvimento da criança – é através do simbólico que os portadores da TEA criam “seus mundos”: “Nesse lugar figurativo, eles conseguem representar suas preocupações e sentimentos que os incomodam na sua vida real. Eles exercitam a capacidade de fantasiar situações lúdicas”. O ato de projetar a realidade no imaginário é muito interessante para crianças como Otávio, que sentem dificuldades de lidar com o convívio social. “É muito complicado para ele interagir e se comunicar com outras pessoas, com a tecnologia tudo fui melhor”, complementa Paixão.

A criação do “Foco x Cuca Fresca” foi comemorada por Cristina, que sente falta de tecnologias voltadas a esse público tão específico: “Faltam investimentos em pesquisa e em produções que auxiliem as crianças no desenvolvimento. A alfabetização é um momento importante na vida de uma criança e tenho certeza que um aplicativo como esse ajudará a mudar a história de muitos portadores da TEA”.


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